quinta-feira, setembro 15

CHÁ QUENTE #102

"...com o tempo foram-se manifestando alguns traços menos favoráveis do poder local. Entre eles avultam a falta de renovação política em muitas autarquias, havendo presidentes de câmara municipal que se mantêm no cargo desde as primeiras eleições em 1976; o urbanismo caótico e a desorganização urbana em muitas zonas do país; a preferência pela obra física visível, secundarizando a menos visível (como o saneamento básico e o ambiente); as "ligações perigosas" entre o poder local, o sector imobiliário e o futebol; a ocorrência de algumas graves situações de caciquismo populista, de corrupção e de financiamento irregular de partidos políticos; a acumulação de prerrogativas e de privilégios dos autarcas (por exemplo, regime de pensões e de acumulações); o empolamento dos quadros de pessoal; as frequentes acusações de favoritismo político-partidário, ou mesmo de gritante nepotismo, no recrutamento de pessoal e na contratação de bens e serviços.
Na verdade, existe hoje um relativo consenso sobre os principais problemas do poder local. A lista é longa, mas entre eles contam-se seguramente os seguintes: défice de renovação política no mundo autárquico, de que os "dinossauros" são a face mais visível; incongruência crescente do sistema de governo, entre o modelo de órgãos colegiais previstos na Constituição e o crescente presidencialismo do poder local; a excessiva dependência de recursos financeiros do Orçamento do Estado, conjugada com um défice de responsabilidade financeira das autarquias e a demasiada importância do sector imobiliário como fonte de receitas municipais; a ineficiência dos mecanismos de controlo endógeno e exógeno do poder local, dada a ineficácia das assembleias locais, a falta de meios de escrutínio popular externo e a impotência dos meios de tutela estadual; a relativa opacidade e falta de critérios da administração municipal em várias áreas, designadamente no recrutamento de pessoal, nos contratos de aquisição de bens e serviços, nos licenciamentos, no apoio a particulares e a iniciativas privadas; a referida promiscuidade com os interesses imobiliários; a proliferação de entidades de administração indirecta, como empresas municipais e fundações municipais, que tornam a gestão municipal mais imune ao escrutínio público.
Não admira, por tudo isto, que a reforma do poder local esteja na agenda política pública desde há vários anos, especialmente centrada sobre os temas mais visíveis, como a limitação do número de mandatos, a reforma do sistema de governo e a revisão das finanças locais. Mas, bem vistas as coisas, tudo ou quase tudo no regime do poder local carece de revisão mais ou menos profunda, desde o regime de criação e extinção de autarquias até à tutela governamental, desde os serviços municipais até ao regime das empresas públicas municipais..."


In O poder local como problema, por Vital Moreira

(...leitura ideal após visionamento de debates autárquicos na rtp-a)