Canto Vigésimo Oitavo
Tenho a impressão que a avareza
não é um defeito que acontece na velhice
quando o tédio já invadiu o cérebro.
A mim salvou-me aos setenta anos
quando uma tarde comecei a apagar as luzes
e o meu irmão tropeçava por todo o lado.
Agora recolho os fósforos usados
(com algodão podem servir para limpar os ouvidos)
e de manhã à noite tenho muito que fazer:
quero que o meu irmão deite pouco açucar
no leite, e eu, guloso por mel,
lambo apenas uma colherzita ao domingo,
em pé, entre as duas portas do guarda-louça.
A toalha não é necessária, usámos um pedaço de papel
que depois serve também para acender o lume.
De noite se ninguém se levanta
basta uma candeia enquanto o outro permanece no escuro.
Assim passa uma hora, passam duas, passa um mês
e a cabeça trabalha.
O Mel, Tonino Guerra. Assírio & Alvim, 2003.
(Porque é preciso celebrar a Razão)
4 comentários:
Excelente!
Sempre adorei a razão de ser de uma avareza bem servida....de preferência ao pé de uma lareira acesa,queimando um tronco de cada vez.
Pensar faz bem e recomenda-se...E é um bem raro......in these days...
Belíssimo texto que, por coincidência, lera recentemente! :)
Um sublime texto num sublime livro...
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