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Mantivera no fim da adolescência
aquilo a que chamava simplesmente
o seu diário íntimo:
páginas manuscritas onde ardiam
rastilhos de mil sonhos que rasgavam
as mordaças da angústia social,
a timidez tão própria da idade.
Nessa caligrafia cuja cor
fora ainda a do sangue
colheu a energia necessária
pra atravessar como um sonâmbulo
o ordálio daquela juventude,
o seu incandescente calendário
de amizades vorazes, tão velozes
como os amores que julgava eternos
e outras feridas mal cauterizadas.
Hoje quase não volta a essas páginas:
estamos no século XXI
e em vez do diário de outros tempos
mantém agora um blog
onde todos os dias extravasa
recados, atitudes, confissões,
coisas no fundo tão inofensivas
como o fogo que outrora lhe acendia
as frases lancinantes
- embora hoje em dia quando escreve
tenha por um momento a ilusão
de que as suas palavras continuam
a propagar ainda o mesmo vírus,
e a alimentar, quem sabe, os mesmos
sonhos
sempre que alguém desconhecido as ler
como quem só assim então escutasse
um segredo na noite do mundo.
Mas, apesar de todo o entusiasmo
que o mantém acordado por noites sem fim,
ele adivinha que também virá
um dia a abandonar sem saber como
o seu actual vício solitário
e dentro de alguns anos, ao reler
as frases arquivadas no computador,
talvez tudo isso lhe pareça então
fruto de gestos tão adolescentes
como os que antigamente preenchiam
esses cadernos amarelecidos
e hoje sepultados para sempre
em esquecidas gavetas de outro século.
In Pena Suspensa, Fernando Pinto Amaral
(A razão para continuar até o Chá deixar de ter sabor)
1 comentário:
(...)como quem só assim então escutasse
um segredo na noite do mundo.(...)
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